terça-feira, 15 de maio de 2018

CENA 6. ÔNIBUS. EXT. DIA

a gente que vai no 5401 São Luiz-Dom Cabral das cinco em ponto da manhã é como comunidade, é um clã, uma vitória, reunião de velhos conhecidos, é cara de sono, cabelo molhado, blusa de frio, é cheiro de marmita, dos muitos humores e também de desodorante misturados com a esperança do Gonçalo, o motorista/trocador/terapeuta da Teresinha, que já perdeu toda a fé no país, menos  no camarada que deve ter ali, perdido num dos bolsos, um dinheiro menor que aquela nota de vinte sacada assim, logo de cara, na abertura dessa primeira viagem, para acertar os quatro reais e cinco centavos acatados como preço da passagem. 
o bom dia sai contido, outro sonoro e tem gente que nem dá. não é bonito, nem feio. um encontro meio alegre, meio triste. é uma espécie de confirmação que quase tudo deu certo, apesar do todo estar muito errado. é sinal que o Tião, a Maria, o Finzinho e a Terezinha continuam empregados, que a mocinha vai chegar a tempo, eu não perdi o horário, o ar condicionado não estragou e que a pista está desimpedida para a vida seguir nada sã mas um pouco mais salva com a gente ainda podendo escolher se vai sentar na janela pra assistir o dia rompendo lá fora ou dormir o sono divino dos pescoços tortos, que só dentro de um busão a gente consegue recuperar.

sexta-feira, 27 de abril de 2018

CENA 5. PRAÇA. EXT. DIA

dois vira-latas, sarnentos
os pelos coloridos 
pelas cores todas 
e que são  ainda 
(e talvez para sempre) 
quase meio nada
vadiam na grama, no olho da praça
o teatro que podem:
se enroscam
rosnam o mais alto possível 
a ideia que têm de 
cães ferozes
que não chegarão a ser, é certo
enquanto se roçam e trocam mordiscadas por todo contorno de suas poucas peles-carnes-e-ossos
e alimentam o raro escape de alegria 
que essas palavras 
agora, aqui
conseguem alcançar.

segunda-feira, 16 de abril de 2018

CENA 4. RUA. EXT. DIA.

feito coisa barata tonta nos movemos
a roer algum resto besta de esperança
deixado distraidamente
sobre a pia
enquanto aguardamos
atônitas e desamparadas
que se cumpra a previsão
da nossa sobrevivência
diante da resolução máxima
de quem aperta o botão
e injeta vida nos pulmões
das prometidas bombas atômicas
apontadas para o peito
das gentes paridas
em cada ponto cardeal 
disso que, por ora,
chamamos mundo.

quarta-feira, 14 de março de 2018

CENA 3. SALA DO APARTAMENTO. INT.NOITE

se ocupa em imaginar 
a fisionomia de quem
às dezenove horas
pontualmente 
na porta ao lado
se ocupa em escutar 
sempre no talo
a voz do Brasil 
mais uma vez
anunciando
em outras palavras
desmedidas históricas
que confirmam a surdez 
convenientemente
adotada
como estratagema política 
pelo ilegitimo senhor presidente
aconselhado por seus aliados
do alto de suas tantas mesóclises 
de onde, com conforto e segurança
executa
diariamente
suas sequências de golpes
filhas de luta nenhuma
e órfãs de qualquer competição. 

segunda-feira, 12 de março de 2018

CENA 2. QUARTO. INT. NOITE

enquanto tenta lidar com
o atraso 
os boletos todos
a resposta dita 
pelo de fato não dito
e já declarado 
imposto de renda 
o lixo 
abarrotado na quina 
do banheiro 
e tem também as certidões negativas de débito 
misturadas 
com o preço do tomate  
cada vez mais alto
o vão 
entre os azulejos 
da cozinha
ao lado da torneira 
que pinga
na cama do vizinho 
de cima 
que provavelmente
não suporta mais
- outra transa daquela -
a última do presidente

tropeça-se num verso 

sem resistir
cai de boca
joelho e tudo 
vertiginosamente
para sempre 
naquela noite
incerta de chão

quinta-feira, 8 de março de 2018

CENA 1. ÔNIBUS. INT. DIA

comoveu-se dentro do ônibus 
parado
observando a moça da lotação
ao lado
dormir como quem dorme 
suas todas horas mal dormidas
de bochecha, sobrancelha de henna e tudo mais
colados
no vidro do ônibus 
lotado
numa qualquer avenida dessas
onde 
se pá
nada se move
ninguém atravessa
na faixa exclusiva
das oito horas e vinte minutos
horário esse 
combinado
por toda cidade 
para atravessar 
preguiçosa
rumo aos endereços 
mapeados
no outro extremo municipal.